Opinião
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Marão, que sonho de prova...

'Cheguei lá cima e à minha espera estava uma das maiores tempestades que vi. Vento que quase me arrancava do chão e depois granizo. Granizo não. Granito! Eram blocos enormes disparados contra nós'…A crónica sobre a participação nos 55 quilómetros do Ultra Trail do Marão.

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  • Sr. Ribeiro no Ultra Trail do Marão ! Fonte: D.R.
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Por Crónicas do Sr. Ribeiro

Já comecei três ou quatro vezes a tentar descrever a prova [Ultra Trail do Marão, 55 quilómetros].

Acabo sempre por ter páginas e páginas de ideias incompletas. Estão a faltar-me as palavras para Sábado.

Digo sempre, porque gosto muito do que faço, que foi das melhores provas que fiz.

Como os meus filhos brincam comigo cada vez que como sopa :“É das minhas sopas preferidas”.

Mas desta vez foi mesmo. Diria mesmo que esta prova teve um defeito, acabou.

Ou melhor, teve três defeitos. Acabou, não havia sopa ao km 37 (onde eu tinha imaginado em casa a olhar para o gráfico que me sentava a comer uma sopinha, das minhas preferidas) e a última montanha não era tão grande como eu gostaria.

De resto…

Bolas!

Fui com alguns dos meus melhores amigos para cima. Malta de sempre, mas agora a correr comigo. A Sra. Ribeiro, sem qualquer treino, atirou-se aos 25kms, que terminou de forma exemplar, como heroína que é.

Eu achava que já conhecia a prova, por já ter feito uma ou duas subidas, no ano passado quando fui aos 100 que foram 90. Mas como me farto de dizer, a Montanha é um ser vivo.

E mudou, para melhor.

Não é mensurável a alegria que tive ao apresentar a subida antes do primeiro abastecimento a um amigo meu.

Eu saí um bocado à frente e antes de fazer o ataque final, sabendo o que aí vinha, parei vesti o impermeável. Enquanto isso passaram os meus amigos a quem pedi para fazer o mesmo. Expliquei que estava a reconhecer o caminho e mais à frente teríamos um bombom.

E que bombom.

É linda! Linda!

O trilho vai ficando vazio, como se fosse alta montanha. Rapado, a vegetação rasteira e as enormes pedras substituem as árvores. Primeiro só vemos o cume da subida, porque temos de descer um bocadinho antes da última rampa. Nessa altura eu ia descrevendo o que achava que nos esperava.

Mas no ano passado não se via um palmo à frente do nariz. Eram duas da manhã e caía o céu. Dava para perceber que era inclinada. Chegámos à base olhámos para cima e todo eu vibrei…

Estava em casa. Estava de volta onde sempre quis e quero estar. Sentia-me na Montanha. Eu sei que eram só mil metros, mas valem por muito mais.

Depois a descida para sair de lá. Um parque de diversões de duzentos ou trezentos metros em cima de pedras rolantes. Como se fosse uma pista de ski para corredores. Lancei-me por ali a baixo feliz como poucas vezes.

Eu não sabia o que era a segunda subida do mapa. Calculava que fosse um estradão. Quem fez esta distância no ano passado pintou-me assim.

No entanto, a organização decidiu mudar e abriu uma das subidas mais agressivas que apanhei numa ultra em Portugal. 500 metros de altitude em dois quilómetros, abertos à bruta entre pedras.

A imagem era de formigas. Um carreiro de formigas a subir a montanha. Se eu não queria que a primeira acabasse, desta segunda não queria ter saído, até que lá cheguei a cima e à minha espera estava uma das maiores tempestades que vi.

Vento que quase me arrancava do chão e depois granizo. Granizo não. Granito! Eram blocos enormes disparados contra nós. E, pela primeira vez, a descida não era vertical, mas progressiva, o que significava que iríamos demorar bastante a baixar a cota e chegar a segurança.

Foi então que percebi que, cada vez mais, me sinto no meu ambiente. Parecendo louco, num sítio completamente desabrigado, assim que senti as mãos passarem a temperatura de conforto, parei, com toda a calma do mundo, encostei os bastões, tirei a mochila e calcei as luvas do frio. Pela primeira vez numa prova tive de usar luvas.

E desci, quentinho das mãos por entre pedras furiosas que me atingiam. Ia demasiado feliz para conseguir descrever o que seja.

Lá em baixo, já com calor, tirei o casaco, mas nem cinco minutos depois o céu abriu e desfez-se em cima de mim. Ri-me e voltei a vestir-me.

Estava a ser demasiado boa. Ia progredindo, devagarinho, como planeado, mas tudo corria bem. Nunca rebentei. Olhei para o abastecimento dos 37 como um marco. Era ali que ia começar a tentar impor ritmo.

A meio dessa subida, reconheci os locais onde, no ano passado me senti pior, mas este ano ia tão bem…

Parei no abastecimento. Não tinham sopa. Bebi coca-cola e segui. Era a última grande subida.

É magnífica. A parte final é completamente exposta. Mais uma vez, no meio de enormes pedras, quase com um aspecto místico.

Cheguei ao fim dessa subida triste. Tinha acabado. Era só descer, fazer um altinho e voltar para casa…

Mas o caminho que se segue é único. Um serpentear de vários quilómetros, dentro de uma floresta encantada, sempre a seguir o curso do rio. Há quem diga que faz lembrar a Lousã.

Eu acho o contrário. O Marão apaixonou-me. O mundo conta-se a partir de lá. A Lousã, tem partes que me lembram a descida do Marão…

No último abastecimento a festa do costume. Tudo único, fui recebido como um velho amigo. Eu ia-me encolhendo à espera do pior, que tinha de estar para chegar.

Chegou em forma de dor de barriga. Duas guinadas e duas idas de emergência à casa de banho improvisada.

Mas até isso correu bem, a segunda vez que saio de trás das moitas, passa o Salvador com quem faria os últimos 7kms. A última subida, a tal que soube a pouco, e a última descida, onde ele além de me tentar matar, me obrigou a dar ao chinelo.

Resultado, cheguei ao fim estoirado pelo esforço final, aquela aceleração manhosa, mas ainda bem que o fiz. Porque se não tivesse acelerado aí, teria chegado e começaria a dar uma segunda volta.

Por isto é que acho que desta vez é mesmo uma das minhas provas preferidas. Acabei como quem desiste, triste por parar.

Estava a correr bem. Estava a adorar a prova, o meu ritmo de prova estava a ficar certinho. Certamente haveria mais umas quantas montanhas para subir.

O relógio acusou certinho os 55kms prometidos. Nunca me perdi. A única vez que hesitei no caminho, foi tão estranho que parámos quatro pessoas, apenas para verificar que estávamos bem.

Faltou a sopa, mas eu queria aos 37, havia quem a quisesse aos 33 e até aos vinte e não sei quê. Ou seja, teriam de ter feito 600 litros de sopa para ficarmos todos felizes.

De resto, a organização dos 55kms esteve irrepreensível. O percurso estava demasiado bom, as condições do tempo foram demasiado perfeitas.

Se eu soubesse que o dia ia ser perfeito tinha aproveitado ainda mais…

Que sonho de prova!

 

 

Por Crónicas do Sr. Ribeiro

Já comecei três ou quatro vezes a tentar descrever a prova [Ultra Trail do Marão, 55 quilómetros].

Acabo sempre por ter páginas e páginas de ideias incompletas. Estão a faltar-me as palavras para Sábado.

Digo sempre, porque gosto muito do que faço, que foi das melhores provas que fiz.

Como os meus filhos brincam comigo cada vez que como sopa :“É das minhas sopas preferidas”.

Mas desta vez foi mesmo. Diria mesmo que esta prova teve um defeito, acabou.

Ou melhor, teve três defeitos. Acabou, não havia sopa ao km 37 (onde eu tinha imaginado em casa a olhar para o gráfico que me sentava a comer uma sopinha, das minhas preferidas) e a última montanha não era tão grande como eu gostaria.

De resto…

Bolas!

Fui com alguns dos meus melhores amigos para cima. Malta de sempre, mas agora a correr comigo. A Sra. Ribeiro, sem qualquer treino, atirou-se aos 25kms, que terminou de forma exemplar, como heroína que é.

Eu achava que já conhecia a prova, por já ter feito uma ou duas subidas, no ano passado quando fui aos 100 que foram 90. Mas como me farto de dizer, a Montanha é um ser vivo.

E mudou, para melhor.

Não é mensurável a alegria que tive ao apresentar a subida antes do primeiro abastecimento a um amigo meu.

Eu saí um bocado à frente e antes de fazer o ataque final, sabendo o que aí vinha, parei vesti o impermeável. Enquanto isso passaram os meus amigos a quem pedi para fazer o mesmo. Expliquei que estava a reconhecer o caminho e mais à frente teríamos um bombom.

E que bombom.

É linda! Linda!

O trilho vai ficando vazio, como se fosse alta montanha. Rapado, a vegetação rasteira e as enormes pedras substituem as árvores. Primeiro só vemos o cume da subida, porque temos de descer um bocadinho antes da última rampa. Nessa altura eu ia descrevendo o que achava que nos esperava.

Mas no ano passado não se via um palmo à frente do nariz. Eram duas da manhã e caía o céu. Dava para perceber que era inclinada. Chegámos à base olhámos para cima e todo eu vibrei…

Estava em casa. Estava de volta onde sempre quis e quero estar. Sentia-me na Montanha. Eu sei que eram só mil metros, mas valem por muito mais.

Depois a descida para sair de lá. Um parque de diversões de duzentos ou trezentos metros em cima de pedras rolantes. Como se fosse uma pista de ski para corredores. Lancei-me por ali a baixo feliz como poucas vezes.

Eu não sabia o que era a segunda subida do mapa. Calculava que fosse um estradão. Quem fez esta distância no ano passado pintou-me assim.

No entanto, a organização decidiu mudar e abriu uma das subidas mais agressivas que apanhei numa ultra em Portugal. 500 metros de altitude em dois quilómetros, abertos à bruta entre pedras.

A imagem era de formigas. Um carreiro de formigas a subir a montanha. Se eu não queria que a primeira acabasse, desta segunda não queria ter saído, até que lá cheguei a cima e à minha espera estava uma das maiores tempestades que vi.

Vento que quase me arrancava do chão e depois granizo. Granizo não. Granito! Eram blocos enormes disparados contra nós. E, pela primeira vez, a descida não era vertical, mas progressiva, o que significava que iríamos demorar bastante a baixar a cota e chegar a segurança.

Foi então que percebi que, cada vez mais, me sinto no meu ambiente. Parecendo louco, num sítio completamente desabrigado, assim que senti as mãos passarem a temperatura de conforto, parei, com toda a calma do mundo, encostei os bastões, tirei a mochila e calcei as luvas do frio. Pela primeira vez numa prova tive de usar luvas.

E desci, quentinho das mãos por entre pedras furiosas que me atingiam. Ia demasiado feliz para conseguir descrever o que seja.

Lá em baixo, já com calor, tirei o casaco, mas nem cinco minutos depois o céu abriu e desfez-se em cima de mim. Ri-me e voltei a vestir-me.

Estava a ser demasiado boa. Ia progredindo, devagarinho, como planeado, mas tudo corria bem. Nunca rebentei. Olhei para o abastecimento dos 37 como um marco. Era ali que ia começar a tentar impor ritmo.

A meio dessa subida, reconheci os locais onde, no ano passado me senti pior, mas este ano ia tão bem…

Parei no abastecimento. Não tinham sopa. Bebi coca-cola e segui. Era a última grande subida.

É magnífica. A parte final é completamente exposta. Mais uma vez, no meio de enormes pedras, quase com um aspecto místico.

Cheguei ao fim dessa subida triste. Tinha acabado. Era só descer, fazer um altinho e voltar para casa…

Mas o caminho que se segue é único. Um serpentear de vários quilómetros, dentro de uma floresta encantada, sempre a seguir o curso do rio. Há quem diga que faz lembrar a Lousã.

Eu acho o contrário. O Marão apaixonou-me. O mundo conta-se a partir de lá. A Lousã, tem partes que me lembram a descida do Marão…

No último abastecimento a festa do costume. Tudo único, fui recebido como um velho amigo. Eu ia-me encolhendo à espera do pior, que tinha de estar para chegar.

Chegou em forma de dor de barriga. Duas guinadas e duas idas de emergência à casa de banho improvisada.

Mas até isso correu bem, a segunda vez que saio de trás das moitas, passa o Salvador com quem faria os últimos 7kms. A última subida, a tal que soube a pouco, e a última descida, onde ele além de me tentar matar, me obrigou a dar ao chinelo.

Resultado, cheguei ao fim estoirado pelo esforço final, aquela aceleração manhosa, mas ainda bem que o fiz. Porque se não tivesse acelerado aí, teria chegado e começaria a dar uma segunda volta.

Por isto é que acho que desta vez é mesmo uma das minhas provas preferidas. Acabei como quem desiste, triste por parar.

Estava a correr bem. Estava a adorar a prova, o meu ritmo de prova estava a ficar certinho. Certamente haveria mais umas quantas montanhas para subir.

O relógio acusou certinho os 55kms prometidos. Nunca me perdi. A única vez que hesitei no caminho, foi tão estranho que parámos quatro pessoas, apenas para verificar que estávamos bem.

Faltou a sopa, mas eu queria aos 37, havia quem a quisesse aos 33 e até aos vinte e não sei quê. Ou seja, teriam de ter feito 600 litros de sopa para ficarmos todos felizes.

De resto, a organização dos 55kms esteve irrepreensível. O percurso estava demasiado bom, as condições do tempo foram demasiado perfeitas.

Se eu soubesse que o dia ia ser perfeito tinha aproveitado ainda mais…

Que sonho de prova!

 

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